“Economia do cuidado tira a mulher do lugar público”, provoca especialista do CEUB ao analisar tema de redação do Enem

Tema da redação do Enem aborda combate à exaustão 

Enraizada na sociedade brasileira, a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres no país é influenciada pela naturalização do papel feminino nessa atividade como algo intrínseco ao gênero. De acordo com estudo realizado pelo FGV IBRE, as mulheres dedicam até 25 horas por semana a tarefas domésticas e cuidados com familiares, enquanto os homens cumprem apenas 11 horas. Juliana Nóbrega, especialista em Carreira e Empreendedorismo do Centro Universitário de Brasília (CEUB), contesta essa máxima e sugere a implementação de políticas públicas estruturantes para prover inclusão social, educacional, financeira e profissional para essas mulheres. 

Confira a entrevista integral da especialista do CEUB:

Qual é a importância de abordar a invisibilidade do trabalho da mulher no Brasil como tema da redação do Enem?

– Os temas da redação do Enem são um farol, orientam os conteúdos que irão compor os currículos e os debates em sala de aula. Também abordam questões de relevância para a sociedade, o que, consequentemente, deve fazer parte da formação dos estudantes. Sendo assim, quando vemos um assunto tão naturalizado – como a questão da invisibilidade do trabalho não remunerado realizado pelas mulheres – damos luz à essa reflexão. Eu acredito que muitos estudantes, enquanto faziam suas redações, pensaram em suas mães, irmãs, tias e avós. Pensaram em quem preparou o café daquela manhã, em quem estava fazendo o jantar enquanto o jovem projetava seu futuro naquela prova. Talvez, nunca tenham parado para observar isso antes. O valor é incomensurável.

Quais são os principais desafios enfrentados pelas mulheres no que diz respeito ao trabalho de cuidado não remunerado?

– O trabalho do cuidado não é visto como um trabalho na sociedade, o que traz vários impactos para a vida das mulheres. Primeiro porque não lhes gera renda, fato que coloca a mulher em situação de vulnerabilidade e dependência. Muitas mulheres mantêm relacionamentos violentos porque não têm como se manter, nem manter os que estão sob seus cuidados, fora a relação abusiva. Outro aspecto é a questão da autoestima e da emancipação, já que o trabalho do cuidado não é valorizado, que não gera saídas nem lucro, na perspectiva capitalista. Mulheres que se dedicam exclusivamente ao cuidado tendem a não se reconhecerem como trabalhadoras, impactando na percepção que têm sobre si mesmas.

Como a invisibilidade do trabalho de cuidado afeta a vida das mulheres e da sociedade como um todo?

– As atividades de cuidado consomem tempo e energia das mulheres, que poderiam ser usados para diversas outras atividades, como o desenvolvimento intelectual e profissional, o autocuidado, o lazer e o ócio. Pensando numa conjuntura social, repercute no acesso das mulheres ao mercado de trabalho e na sua ascensão profissional. Muitas mulheres optam por estacionar suas carreiras, pois preocupam-se que novas responsabilidades no trabalho lhes tirem do papel de cuidadoras no contexto da família. Elas podem se sentir culpadas, menos mulheres, menos mães, menos filhas, menos esposas porque simbolicamente esse trabalho é naturalizado como algo intrínseco à feminilidade – mas não é. Talvez a cura do câncer esteja na mente de uma mulher que está ocupada demais com os afazeres domésticos. Quantas Marie Curies, Adas Lovelaces, Katherine Johnson estão em casa nesse momento?

Que políticas públicas e ações podem ser adotadas para combater a invisibilidade do trabalho da mulher no Brasil?

– As mulheres em atividades de cuidado são o motor da economia capitalista. Não existiria capitalismo se não existisse o cuidado. Portanto, é dever do Estado prover condições para que essas mulheres tenham uma vida digna, inclusive de acesso à renda. A oferta de creches e escolas públicas, incluindo as vagas de tempo integral, é também um papel que o Estado deve cumprir adequadamente para amenizar o problema. Para isso, é preciso entender que o cuidado não é uma pauta particular, mas sim uma questão coletiva. Não é sobre uma mulher e sua família, é sobre como uma sociedade provê as próximas gerações, como ela oferece dignidade às pessoas idosas, doentes.

Como a educação e a conscientização podem desempenhar um papel na mudança dessa realidade?

– Este é um ponto fundamental. O letramento de gênero cumpre o papel de refutar a ideia biologizante de que o cuidado é parte da natureza da mulher, porque muito da invisibilidade emerge do que esse tipo de discurso pavimenta. Por isso que é tão importante que as crianças e jovens sejam introduzidos nessas discussões, por isso que é tão valioso ver um tema desse no Enem.

Qual é o papel das lideranças políticas e da sociedade civil na valorização do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres?

– Trazer a discussão para o campo político porque é aí onde efetivamente se criam as leis e as políticas públicas. A sociedade civil deve ser organizar para cobrar dos seus representantes, um debate sério e profundo sobre essas questões.

De que maneira a mobilização do governo pode impactar a conscientização sobre essa questão?

– Quando escolhemos nossos representantes, devemos ter em mente quais são seus princípios, suas prioridades, sua visão de mundo. Num país com desigualdades sociais tão profundas e históricas, não é democrático priorizar quem já desfruta de privilégios. Se queremos superar as barreiras de classe, raça, gênero, ter uma sociedade mais justa, precisamos mudar as bases que propiciaram e propiciam essas desigualdades. A primeira-dama, como mulher, quando assume a dianteira desses temas, traz toda sua representatividade, ressignificando inclusive o próprio cargo, que historicamente carrega essa semântica do cuidado. Se quisermos falar de uma primeira-dama que cuida, que seja então um cuidado político.

Como a invisibilidade do trabalho da mulher se relaciona com outras questões de gênero, como a desigualdade salarial e a representação política?

– A economia do cuidado coloca a mulher no lugar privado retirando-a do lugar público. Isso repercute, consequentemente na questão da representatividade. Muitas mulheres abdicam de seus sonhos porque o cuidado que lhes é imposto, literal ou simbolicamente, toma todo o seu tempo e energia. Outras tantas nem chegam a sonhar com uma vida para além do cuidado porque nunca lhes foi dito que elas poderiam ocupar qualquer outro lugar. Essa lógica afeta a dinâmica dos desejos, das subjetividades, e essas marcas são profundas, históricas, muito difíceis de explicitar, de mensurar.

Quais são os principais desafios que os estudantes podem enfrentar ao abordar esse tema na redação do Enem e como podem superá-los?

– Eu gostaria de dizer que foi um tema fácil, mas não foi. É preciso ter visão sistêmica e complexa para compreender a teia de questões e consequências envolvidas no tema. Mas a interdisciplinaridade e o conhecimento para a cidadania estão longe de ser uma prática na educação, quando as escolas ainda priorizam o conteudismo de modo atomizado. Muitas instituições mudaram drasticamente ao longo da história, mas a escola continua com a mesma estrutura desde a revolução industrial. Talvez tenha uma razão para isso, não é?

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